Em se tratando de um imóvel tombado como patrimônio histórico e considerado um marco da colonização japonesa no Brasil; um prédio localizado na porção paulista do Vale do Ribeira, esse território que preserva a maior área contínua de Mata Atlântica do país e é cortado pelo rio Ribeira de Iguape, o maior rio que ainda corre livre, sem barragens, em terras paulistas; uma terra que abriga comunidades tradicionais indígenas, caiçaras, quilombolas, de agricultores familiares e que acolhe imigrantes de diferentes nacionalidades. Tudo isso - e muito mais em termos da riqueza histórica, cultural, social e ambiental que esse lugar carrega - faz pensar que muitas, muitas histórias permeiam esse prédio e seu entorno.
Estamos falando do KKKK, o prédio erguido em 1922 à margem do rio Ribeira de Iguape e próximo ao antigo porto fluvial do pequeno povoado de Registro, que àquela época, ainda era uma “freguesia” e pertencia a Iguape. Símbolo de um período histórico importante para a região e o Brasil – o início da colonização japonesa – o conjunto arquitetônico que emoldura o centro da cidade de Registro está completando 100 anos neste 2022 e segue testemunhando o percurso da história regional, os acontecimentos que se descortinam tanto em suas instalações quanto à sua volta.
Pensar sobre o centenário do KKKK nos remete às memórias que esse prédio guarda sobre o período em que foi construído, ao contexto histórico e social que antecedeu e sucedeu sua construção, à influência cultural, social e econômica expressa em suas funções e finalidades, à relação das pessoas com o espaço, ao cenário do qual o prédio faz parte. E quais recortes dessa rica diversidade de culturas e paisagens que compõem a região podem ser pensados por ocasião do centenário do KKKK?
São vários fragmentos da história que vão formando intersecções ao longo do tempo-espaço: a paisagem da Mata Atlântica abastecendo o Ribeira de Iguape, o rio que está diretamente conectado aos modos de vida dos povos indígenas, caiçaras e quilombolas que construíram suas histórias ao longo de séculos nesse território; lugar marcado pela colonização ibérica, pela escravidão, e que passou por vários ciclos econômicos, como o do ouro e o do arroz, esse último um alimento e produto que está na base da construção do prédio do KKK; esse espaço que, por sua vez, ancorou todo o trabalho de apoio aos imigrantes japoneses, colonização esta que foi determinante para o crescimento do antigo porto de Registro, assim chamado por ser o local onde se registrava o ouro garimpado em rios do Vale do Ribeira. Registro que virou município e que, em seu centro velho, testemunhou as várias fases do KKKK: a suspensão das atividades do engenho de arroz, o abandono do prédio, as adaptações e novas funções, o tombamento como patrimônio histórico, a desapropriação, a restauração, o Memorial da Imigração Japonesa, a chegada do Sesc Registro, os 100 anos...
São fios de memórias trazendo à tona cenários do passado, ajudando a compor o presente e também a tecer o futuro. “Há uma riqueza de informações acerca do KKKK que precisa ser conhecida. Queremos chamar a atenção do público da região e de quem mais tiver acesso às comemorações do centenário sobre a importância social, cultural, simbólica e arquitetônica desse patrimônio histórico. Um prédio que marcou um período importante da história da região e do Brasil - a colonização japonesa – e que também ajuda a contar outras histórias que se relacionam com o seu entorno: como era e o que havia no local em que o KKKK foi construído, quem já vivia aqui na região, quais grupos sociais também fizeram e ainda fazem parte dessa história. Queremos conversar sobre todas essas relações do passado e do presente e convidar as pessoas a construírem novas histórias junto com o Sesc”, afirma a gerente do Sesc Registro, Débora Rodrigues Teixeira.
Ocupando o espaço desde 2016, o Sesc Registro é o anfitrião das comemorações do centenário do KKKK. E por isso convida e propõe à população do Vale do Ribeira: vamos celebrar e refletir? Garantindo a pluralidade de vozes que formam o território, a ideia é lembrar junto: o que foi esse prédio nos últimos 100 anos; perceber junto: o que ele representa agora; construir junto: o que ele será nas próximas décadas. Uma programação com diferentes linguagens artísticas e culturais e formatos de ações vai se desenrolar ao longo dos próximos meses com o intuito de facilitar o diálogo com as comunidades locais sobre os vários aspectos que envolvem o KKKK.
A beleza arquitetônica do conjunto de prédios é um dos elementos que marcam sua importância na paisagem urbana do município de Registro e também um dos eixos destacados pelo Sesc para compor a programação do centenário. Os aspectos históricos e simbólicos do prédio e seu entorno são outros eixos que serão destacados, entre eles, a cultura do arroz, alimento que agrega muito valor às diversas comunidades que habitam a região.
Outro elemento fundamental nas comemorações é o rio Ribeira de Iguape, por sua conexão com o KKKK e estreita relação com a história da região. Considerado como a principal “estrada natural” e um “corredor cultural” do Vale do Ribeira, o rio é um grande referencial para o território e carrega em seu curso a história de seus povos.
“A programação quer fortalecer essa simbiose existente entre o rio e o prédio. Afinal, um faz parte do outro. O KKKK foi construído nesse local por causa do rio, há uma simbologia por trás do fato de ter sido erguido nessa curva específica do rio e não alguns metros à frente da margem, por exemplo.
E a gente quer que essas e outras tantas referências venham à tona pela memória das pessoas que vivem aqui”, ressalta a gerente. Aos 100 anos, o KKKK segue contemplando as águas do rio Ribeira correndo à sua frente em direção ao mar. Mas como a paisagem muda com o passar do tempo, o local se fortalece agora como um espaço-educador, que se abre a aprender e ensinar, a ressoar vozes diversas, culturas e comunidades, a construir novas histórias, e a apresentar outras vivências a partir dessas histórias.
“O KKKK é um lugar mágico e misterioso, onde se descobre uma nova história a cada dia. Nosso desejo com a celebração do centenário é que a população se sinta orgulhosa de morar perto e de poder usufruir desse espaço, de poder contar com um patrimônio como esse na região”, complementa Débora Rodrigues Teixeira.
O KKKK – breve história
“KKKK” vem da sigla de Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, nome em japonês da Companhia Ultramarina de Desenvolvimento, criada no Japão para apoiar imigrantes japoneses que chegavam ao Vale do Ribeira no início do século 20. Antiga sede da empresa, o conjunto de prédios foi inaugurado em 1922, após dois anos de construção.
Composto por quatro galpões de armazenamento e um edifício com engenho de beneficiamento de arroz e equipamento de calderaria, o antigo imóvel deu suporte à produção e à comercialização agrícola dos imigrantes e centralizou a organização da colonização japonesa no Vale do Ribeira até o final dos anos 1930, quando as atividades da KKKK foram encerradas.
Tempos depois, o funcionamento do engenho foi retomado, sob nova administração, e os galpões foram adaptados para sediar atividades sociais e culturais. O valor histórico e cultural do conjunto arquitetônico foi reconhecido com o tombamento pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) em 1987, e pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) em 2010.
Desapropriado pela Prefeitura de Registro em 1990, todo o complexo foi restaurado no início dos anos 2000, com projeto do escritório Brasil Arquitetura, coordenado pelos arquitetos Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci. Após o restauro, o prédio sediou um centro estadual de formação de professores, instituições educacionais e o Memorial da Imigração Japonesa no Vale do Ribeira.
O Sesc Registro ocupa o complexo arquitetônico há seis anos, oferecendo uma série de atividades artístico-culturais, esportivas, educacionais e de lazer a todos os públicos, fortalecendo o local como um centro cultural e espaço educador, compartilhando com as comunidades da região a diversidade da cultura brasileira e regional, e valorizando o que o Vale do Ribeira tem de mais genuíno e representativo de sua riqueza social, ambiental e cultural.