Um tratamento inovador que se mostrou altamente eficaz contra alguns tipos de câncer de sangue (linfoma e leucemia linfoide aguda) está cada vez mais próximo da população brasileira. No mês de junho, o Governo do Estado de São Paulo, por meio de uma parceria entre Butantan, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e Hemocentro de Ribeirão Preto, vai inaugurar as obras de duas unidades de produção de terapia celular para o tratamento do câncer: o Núcleo de Terapia Celular Avançada (Nucel), instalado na Cidade Universitária em São Paulo (SP), e o Núcleo de Terapia Avançada (Nutera), localizado em Ribeirão Preto (SP). A iniciativa faz parte de um acordo de cooperação entre as instituições. Juntas, as unidades terão capacidade de tratar cerca de 200 a 300 pacientes por ano.
A terapia com células CAR-T (sigla para receptor quimérico de antígeno, em português) é desenvolvida no Centro de Terapia Celular da FMRP-USP. O primeiro voluntário, que recebeu o tratamento experimental há dois anos, alcançou a remissão total de um linfoma em estágio terminal. Outros pacientes que optaram pelo tratamento também tiveram remissão. “Trata-se de um tratamento personalizado, pois usa as células de defesa do próprio paciente para combater a doença. É uma terapia absolutamente revolucionária que, na minha opinião, mudará o tratamento do câncer nos próximos anos”, afirma o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, hematologista que lidera o estudo.
Embora já seja aplicada em diferentes países, a terapia celular segue com um grande obstáculo: o custo elevado, que pode chegar a US$ 500 mil por aplicação em cada paciente. A parceria entre Butantan, Hemocentro de Ribeirão Preto e USP na construção das duas unidades tem o objetivo de ampliar o acesso ao tratamento e fazer com que ele chegue ao Sistema Único de Saúde (SUS).
“É uma tecnologia de extrema importância para a saúde pública. A função do Butantan nesse cenário é oferecer sua capacidade de produção, experiência com processos conduzidos sob boas práticas de fabricação, desenvolvimento clínico e entrega de produtos imunobiológicos para tentar reduzir ao máximo o custo dessa terapia”, afirma o gerente de inovação do Butantan, Cristiano Gonçalves, que é responsável pelo Escritório de Inovação e Licenciamento de Tecnologia da instituição.
As unidades de São Paulo e Ribeirão Preto contarão com uma estrutura avançada que permitirá o desenvolvimento, a produção e o armazenamento da tecnologia em um único lugar. As instalações incluem laboratórios de controle de qualidade, salas de produção de vírus, salas limpas de produção de células CAR-T, salas de preparo de meios e soluções e áreas destinadas ao armazenamento do produto final e insumos em tanques de criogenia.
A iniciativa conta com o apoio do governo do estado de São Paulo. “Com esse novo programa, São Paulo reforça seu pioneirismo na pesquisa e na oferta de tratamentos inovadores, de altíssima complexidade, aos brasileiros”, afirma o secretário de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde do Estado de São Paulo, David Uip.
Testes em pacientes
Como a terapia celular ainda está em fase experimental no Brasil, os pacientes foram tratados até então de forma compassiva – por decisão médica, quando o câncer está em estágio avançado e não existe outra alternativa de terapia autorizada. Esse tipo de estudo ainda não é regulatório, ou seja, não influencia na aprovação final do tratamento pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas fortalece a possibilidade de aprovação de um estudo clínico com mais voluntários.
“Nesse momento, o Butantan, o Hemocentro e a USP estão se preparando para submeter o estudo clínico de fase 1 para a Anvisa", diz Cristiano. Segundo ele, com as obras finalizadas em junho, o próximo passo é instalar, qualificar e certificar os equipamentos e treinar as equipes para começar a operar. A expectativa é que a fase 1 tenha início em outubro deste ano, com 30 pacientes com câncer de sangue – especificamente, linfoma non-Hodgkin de células B.
Ensinando o sistema imune a combater o câncer
A tecnologia CAR-T Cell é um tipo de imunoterapia que utiliza linfócitos T, células do sistema imune responsáveis por combater agentes patogênicos e matar células infectadas. O tratamento consiste em retirar e isolar os linfócitos T, ativá-los, “reprogramá-los” para conseguirem identificar células do câncer e depois inseri-los de volta no organismo do indivíduo. Nesse momento, as células de defesa modificadas voltam com mais força para eliminar as células tumorais. Todo esse processo, desde a coleta, modificação das células e aplicação no paciente, pode durar em torno de 60 dias.
Mas como funciona? Após a coleta do sangue, o médico determina parâmetros celulares para separar apenas o grupo celular de interesse (as células T). Depois, os pesquisadores aplicam em laboratório um reagente que estimula a ativação dessas células. “Uma vez que os linfócitos T são ativados e multiplicados, eles são colocados em contato com um vetor lentiviral – um vírus modificado incapaz de causar doença. Esse vetor contém a informação genética de um receptor que reconhece o antígeno chamado CD-19, que é expresso na superfície das células tumorais de neoplasias hematológicas [câncer no sangue]”, explica a biomédica e tecnologista de laboratório Virginia Wagatsuma, do Nucel.
Por conter a informação genética do receptor do CD-19, o vetor faz a célula T expressá-lo em sua superfície, originando as células CAR-T que serão usadas na terapia – e que se ligarão ao CD-19 presente nas células tumorais. O produto é congelado e passa por rigorosos testes de controle de qualidade, para só depois ser infundido no paciente em um processo semelhante à transfusão de sangue. De volta à corrente sanguínea, esse conjunto de células CAR-T reconhece e se liga às células do câncer, induzindo a morte celular.
Um sinônimo de esperança
Para Dimas Covas, o primeiro paciente a receber a terapia celular representou uma experiência inesquecível. “Ele era um homem idoso que já tinha passado por quatro diferentes tratamentos contra linfoma e tinha esgotado as suas possibilidades. Nos primeiros 30 dias de aplicação da CAR-T Cell, a maior parte das células cancerosas foi eliminada e ele entrou em remissão. Infelizmente, cinco meses depois, ele teve um acidente doméstico, sofreu um traumatismo craniano e não resistiu. Essa história marcou muito a vida de todos aqueles que dedicaram seus esforços para tratá-lo”, conta.
O hematologista reforça que o Butantan, junto à USP e ao Hemocentro de Ribeirão Preto, continuará trabalhando para que essa terapia possa ser oferecida em larga escala aos brasileiros.