Quando a estudante de Ciências Contábeis Aline Luiz Oliveira, de 25 anos, recebeu a infusão de células CAR-T, não achou que fosse dar certo. Depois de nove meses de quimioterapia, o tratamento com as células geneticamente modificadas não causou queda de cabelo, não provocou enjoo, não trouxe sofrimento. E, algumas semanas depois, veio a surpresa: as dores debilitantes nas pernas, que foram o principal sintoma da leucemia linfoide aguda tipo B, simplesmente sumiram. “Quando eu vi que minhas dores não estavam acontecendo mais, quanto eu soube que as células CAR-T estavam dominando meu corpo, fui me animando”, lembra ela. Aline ainda não pode ser considerada curada do câncer – para a medicina, isso só acontece após 15 anos de remissão –, mas, na prática, foi exatamente isso que aconteceu.
Ela é uma das sete pessoas que já foram tratadas no Brasil com células CAR-T (sigla em inglês para receptor quimérico de antígeno), uma terapia celular e gênica avançada usada para combater cânceres do sangue como linfoma e leucemia linfoide aguda. E foi justamente com essa experiência que ela participou, na manhã desta segunda (14), do lançamento do maior programa de terapias com células CAR-T contra câncer da América Latina, realizado pelo governo de São Paulo e fruto de uma parceria entre Butantan, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e Hemocentro de Ribeirão Preto.
Por meio do programa, foram construídas duas unidades de produção de terapia celular: o Núcleo de Terapia Celular Avançada (Nucell), instalado na Cidade Universitária em São Paulo (SP), e o Núcleo de Terapia Avançada (Nutera), localizado em Ribeirão Preto (SP). Juntas, as instalações terão capacidade de tratar de 200 a 300 pacientes por ano – atualmente, a aplicação da terapia é experimental e em pequena escala.
A tecnologia CAR-T Cell é um tipo de imunoterapia que utiliza linfócitos T, células do sistema imune responsáveis por combater agentes patogênicos e matar células infectadas. Por meio dela, os linfócitos T são retirados do organismo, isolados e ativados – ou seja, “reprogramados” para conseguirem identificar células do câncer. Por último, eles são inseridos de volta no organismo do paciente. Dessa forma, as células de defesa modificadas voltam com mais força para eliminar as células tumorais. Todo esse processo, desde a coleta, modificação das células e aplicação no paciente, pode durar em torno de 60 dias.
Aline passou pela infusão com células CAR-T em fevereiro de 2021, depois de receber um diagnóstico de remissão após passar por um transplante de medula. “É um grande avanço. Já estou desde 2019 fazendo tratamento. Conheci muitas pessoas que faleceram e não tiveram a mesma oportunidade que eu tive. Por todas essas pessoas, e pelas outras que estão vindo, é muito bom saber que todo mundo vai ter acesso”, vibra Aline. O tratamento de Aline foi realizado no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, a cargo do médico Renato Cunha e equipe.
De acordo com o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, médico hematologista que esteve à frente dos estudos sobre as células CAR-T em Ribeirão Preto, essa terapia celular é a parte mais moderna e mais avançada dos tratamentos atuais contra o câncer. “Estamos falando da possibilidade de cura com baixa toxicidade para algumas dessas doenças. Esse será o tratamento do futuro”, aponta Dimas. “É uma terapia altamente inovadora.”
O principal diferencial do programa de terapia celular é que ele vai permitir, a médio prazo, levar o recurso mais avançado do mundo contra o câncer para pacientes brasileiros por meio do Sistema Único de Saúde – objetivo maior da parceria entre Butantan, USP e Hemocentro. Para isso, um ensaio clínico será realizado ainda este ano, envolvendo 30 pacientes de linfoma não Hodgkin de células B. Segundo Dimas Covas, o desenvolvimento e infusão de células CAR-T pode custar cerca de US$ 1 milhão por paciente fora do Brasil – US$ 400 mil para a terapia em si, e mais US$ 500 mil de despesas hospitalares.
Com pouco mais de um ano após a infusão das células, Aline continua em remissão, e faz acompanhamento mensal em Ribeirão. Ela cita, também é uma grande vantagem da terapia celular a praticidade. “Além de ser um tratamento revolucionário, ele é muito mais prático, porque você fica muito menos tempo internado e depois dele você fica muito melhor.” Quando saiu do hospital após o transplante, Aline estava debilitada, fraca e anêmica. Após o tratamento com CAR-T, a situação era completamente outra: “eu já saí cheia de vida”.