O uso da inteligência artificial no setor da comunicação social causará desemprego e extinguirá diversas funções, disseram os participantes de audiência pública realizada pelo Conselho de Comunicação Social (CCS) nesta segunda-feira (2). A gravidade do desafio e os propósitos de uma futura regulação, por outro lado, foram alvo de divergência dos convidados.
Esta foi a segunda audiência pública do CCS sobre o tema, sob a presidência do advogado e editor-chefe do portal jurídico Migalhas, Miguel Matos.
Segundo o CEO da produtora audiovisual O2 Filmes, Paulo Barcellos, a velocidade de evolução dessas tecnologias é inédita na humanidade e trará impactos imprevisíveis. Para ele, a AI extinguirá empregos, mas também gerará novas profissões. Barcellos explicou como sua empresa já utiliza ferramentas do gênero.
— Aquilo que você precisava de quatro ou cinco pessoas, hoje precisa de uma. Você joga o roteiro [da produção audiovisual] na inteligência artificial e pergunta 'em quantos lugares vou filmar isso? Quantos atores?', e ela consegue fazer esse relatório com precisão assustadora em questão de segundos. Esse impacto já existe. Ninguém escapa desse negócio, em qualquer área, cargo alto ou baixo… Por enquanto, é muito positivo porque você está tendo assistência [da ferramenta]. Mas até quando ela vai fazer o filme sozinha?— disse, lembrando que novas profissões também estão se formando, como a de pessoas especializadas em descrever para o computador o resultado desejado.
Ele também compartilhou, como exemplo de progresso da inteligência artificial, como a ferramenta operada pela plataforma Midjourney, lançada em 2022, que transforma comandos de texto do usuário em imagens geradas digitalmente. Segundo Paulo, os resultados apresentados atualmente atenderiam, por exemplo, à qualidade profissional de uma propaganda e poderiam “tirar um fotógrafo, um modelo, um maquiador de mercado”.
Os membros do CCS revelaram preocupação com a preservação das relações de trabalho, que podem ser afetadas pelo uso dessas ferramentas. A conselheira Sonia Santana, que representa profissionais de cinema e vídeo, questionou se o Estado terá preparo para lidar com o desemprego causado pela IA.
— Nos preocupa muito a eliminação de uma série de cargos. Como elas serão requalificadas? Como será a preparação dos novos profissionais?
A conselheira Maria José Braga, que representa os jornalistas no CCS, defendeu a regulação dessas tecnologias para evitar o aumento da desigualdade.
— As tecnologias trazem problemas que são bastante claros. Primeiro, a exclusão: quem tem acesso? Por mais que haja democratização, o controle [das ferramentas] é restrito e normalmente é utilizado sob determinado prisma, e todos sabemos que é utilizado sob o prisma da reprodução e acúmulo do capital. Então a gente está sempre reproduzindo um exército de excluídos. Nós temos que regular. Não pode ser impeditivo, mas tem que trazer parâmetros para que a gente tenha evolução, e não destruição. A gente não sabe para onde caminha a humanidade. Sinceramente, espero que não seja para a autodestruição.
Representante dos radialistas, o conselheiro José Antônio de Jesus da Silva também defendeu a preservação do emprego em mídias tradicionais.
— É muito importante a regulação, se não nós vamos acabar com a humanidade. Se não tomarmos cuidado, vamos extinguir a classe trabalhadora desse país. A TV se transforma diariamente, o rádio se transforma diariamente… Os debates só têm demonstrado que estamos indo para o fim. Você já consegue fazer um programa de rádio e TV com uma criação artificial falando. É uma preocupação muito grande.
Para a integrante do Conselho de Ética do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) Andressa Bizutti Andrade, o "elemento humano" sempre será necessário para a criação intelectual. Segundo ela, a legislação de direitos autorais ( Lei 9.610, de 1998 ) e decisões judiciais em outros países tendem a considerar a criação artificial como domínio público, de modo que o uso desse material poderia retirar a vantagem competitiva da empresa de comunicação que a utiliza.
— Qualquer pessoa poderia copiar [uma criação de inteligência artificial]. Por isso a gente precisa ainda dos humanos. Se não, todo o investimento que você faz de produção não vale de nada, se todo mundo pudesse copiar. Sou otimista, não acho que a gente vai pro fim da sociedade humana. Quando o rádio apareceu, teve trabalhador que falava que ninguém mais ia usar a voz. Nada disso aconteceu — disse Andressa.
O advogado Ygor Colalto Valerio também apontou vantagens dessas inovações. Ele afirmou que a regulamentação não deve tentar manter as regras das leis atuais sobre comunicação social, que são anteriores às revoluções digitais.
— A tendência de tentar regulamentar para fazer com que as coisas voltem ao que eram é muito perigosa. É importante considerar essas evoluções tecnológicas sob a perspectiva positiva, tratando eventuais desvios de maneira pontual, sem que a possível nova regra impeça a inteligência artificial.
A CEO da Associação Brasileira de Anunciantes, Sandra Martinelli, questionou se a indústria da comunicação social deveria ser regulada quanto à inteligência artificial. Ela apresentou documentos de boas práticas no uso das ferramentas e princípios de autorregulação já existentes para o setor.
Dentre os desafios, Valerio apontou problemas com a confiabilidade da informação que a criação artificial pode trazer. Segundo ele, a democratização da internet pulverizou os criadores de conteúdos, de modo que o controle das informações divulgadas é “praticamente inexistente”. Os poucos elementos que permitiriam assegurar a veracidade de uma informação, como o vídeo de uma pessoa discursando, também podem ser corroídos com o uso dedeep fake(alterações digitais em fotos, áudios ou vídeos imperceptíveis, que se confundem com a realidade).
— Aquele caractere que antes identificava de maneira incontroversa a fonte de uma informação, que é a identidade pessoal de quem gera a informação, passa a ser relativizado com a criação das tecnologias de deep fake.Sem deixar de dizer que essas tecnologias também trazem um campo de possibilidades que é excepcional, por exemplo a possibilidade de você mesmo gravar um deep fake seu que reproduz seu discurso em outra língua.
O Senado instalou, em agosto, a comissão temporária interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA), para discutir o tema no âmbito da Comissão de Comunicação e Direito Digital (CCDD). A Casa também analisa o Projeto de Lei (PL) 2.338/2023 , do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que regulamenta o uso de inteligência artificial. A proposta de Pacheco é fruto da comissão especial de juristas que trabalhou no anteprojeto com esse fim, depois de realizar diversas audiências públicas. O texto, de mais de 900 páginas, foi entregue ao presidente do Senado em dezembro de 2022. Na Câmara, tramita o PL 21/2020, do deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), que cria o marco legal do desenvolvimento e uso da inteligência artificial.
Previsto na Constituição, o Conselho de Comunicação Social é um órgão auxiliar do Congresso Nacional. Entre as suas atribuições, está a de realizar estudos, pareceres e outras solicitações encaminhadas pelos parlamentares sobre liberdade de expressão, monopólio e oligopólio dos meios de comunicação e sobre a programação das emissoras de rádio e TV.