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Quilombolas do Vale do Ribeira querem liberdade para plantar

Comunidades discutiram criminalização das práticas tradicionais e dificuldade para obter licenças para cultivos perenes na 14ª Feira de Troca de Sementes

Redação
Por: Redação Fonte: Assessoria de Comunicação
23/08/2023 às 12h18
Quilombolas do Vale do Ribeira querem liberdade para plantar

Dona Judite é poeta. Da roça é de onde ela tira a inspiração e o sustento. O chão em que ela se criou e formou sua família é o mesmo onde, há mais de 300 anos, seus antepassados se fixaram em busca de liberdade e segurança.

Judite Dias é moradora do Quilombo São Pedro, no Vale do Ribeira – território que se estende do leste do Paraná ao sudoeste de São Paulo. Ali vivem mais de 80 comunidades quilombolas na maior área remanescente de Mata Atlântica do Brasil: um cinturão verde de mais de 2 milhões de hectares de floresta preservada.

 

A lida de Judite com a terra ela aprendeu com os pais, que aprenderam com seus avós, que aprenderam com seus antepassados. Todos guardiões e guardiãs dos conhecimentos e de manejos tradicionais integrados à natureza.

Como forma de reconhecimento da gestão e do uso sustentável dos recursos naturais para agricultura ao longo dos séculos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu as práticas do Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas (SATQ) do Vale do Ribeira (SP) como Patrimônio Cultural Brasileiro.

No entanto, mesmo com a comprovada conservação única de mata nativa e o reconhecimento de que o manejo tradicional quilombola é fundamental para manter a floresta em pé, os quilombolas do Vale do Ribeira têm seus direitos ao manejo da terra tolhidos pela burocracia estatal, o que impacta diretamente em sua sobrevivência, modos de vida e possibilidade de permanência em seus territórios.

Desde a década de 1980, quando o Estado de São Paulo demarcou Unidades de Conservação sobrepostas aos quilombos, os habitantes históricos destes territórios foram submetidos a interpretações e aplicações racistas da legislação ambiental, situação que atrasa os plantios e inviabiliza seu modo de vida tradicional.

O debate sobre o direito de plantar foi o foco das discussões da 14ª edição da Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, ocorrida nos dias 11 e 12 de agosto na cidade de Eldorado (SP), quando lideranças quilombolas expressaram a representantes do poder público paulista e federal suas insatisfações no seminário de abertura da feira, “Culturas perenes e a sustentabilidade dos manejos nos territórios quilombolas”.

Na plateia, representantes de quilombos do território paulista do Vale do Ribeira, entidades do terceiro setor, autoridades dos governos federal e estadual, pesquisadores e acadêmicos e até mesmo estudantes de escolas quilombolas primárias ouviam, ansiosos, o debate que se dava na mesa entre lideranças quilombolas locais e representantes da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), órgão responsável pela fiscalização e licenciamento de suas roças.

Roça perene

A característica das roças perenes é que são cultivos permanentes de culturas agrícolas não anuais, que podem ser monocultivos ou também cultivos mistos, mas que para serem implementados requerem uma conversão de solo.

No caso dos territórios quilombolas, a demanda é pela autorização de supressão de vegetação para manejo de novas áreas de roças perenes, com foco na geração de renda.

“O Estado não deveria enxergar as comunidades quilombolas como inimigas, mas sim como parceiras. Nós somos as pessoas que depredam, que degradam a natureza? Ou nós somos quem preserva a natureza e a condição da vida?”, questionou Laudessandro Marinho da Silva, liderança do Quilombo Ivaporunduva.

“Nossa roça não é agronegócio. Nós temos um jeito diferente de trabalhar com a roça. Sabemos como preservar. Nossos antepassados fizeram e nos ensinaram. Faz parte do nosso bem viver”, defendeu Dona Judite Dias, quilombola do Quilombo São Pedro.

Judita Dias do Quilombo São Pedro, Rodrigo Marinho do Quilombo de Ivaporunduva, José Roberto Sobral da CETESB, Lucia Chamlian Munari, Luiz Henrique Tiburcio da CETESB e a Raquel Painato do ISA, durante o seminário “Culturas perenes e a sustentabilidade dos manejos nos territórios quilombolas”

Advogado popular no Instituto Socioambiental (ISA), Fernando Prioste pontua que a Lei da Mata Atlântica é explícita ao dizer que, quando se trata de comunidade tradicional, deve ser aplicado um procedimento simplificado de licenciamento.

“E isso avançou bastante na questão das roças tradicionais. Mas agora estamos no debate sobre como simplificar este procedimento também para as outras culturas, ditas perenes. Além disso, a própria lei diz que, quando se trata de culturas de subsistência para comunidades tradicionais, não precisa fazer a compensação ambiental prevista na Lei da Mata Atlântica. E isso deveria aparecer já na emissão da licença”, ressalta.

Mas ele alerta que até hoje a compensação ambiental é exigida pelo Governo na região através do incremento de áreas de reserva legal nos territórios quilombolas.

Lei da Mata Atlântica prevê simplificação

A questão que vem dificultando a prática da roça perene pelos quilombolas do Vale do Ribeira (SP) orbita ao redor de interpretações e entendimentos conflitantes, por parte dos órgãos fiscalizadores, de um amplo aparato legal que rege os manejos e as práticas possíveis fora e dentro das Unidades de Conservação que se sobrepuseram aos territórios historicamente ocupados pelas comunidades quilombolas nesta porção da Mata Atlântica.

O Código Florestal determina que os imóveis rurais localizados na Mata Atlântica mantenham, no mínimo, 20% vegetação nativa a título de Reserva Legal, além das áreas de preservação permanente, como beira de rios, nascentes e topo de morros. No entanto, boa parte destas propriedades rurais não preservam o mínimo que a legislação obriga. Mas nos territórios quilombolas as áreas preservadas de vegetação nativa variam de 70% a 90% dos territórios coletivos.

É diante dessa realidade que as comunidades reivindicam a desburocratização dos procedimentos de supressão e manejo da vegetação para implantação de cultivos perenes, como a banana e a pupunha. Como argumentação, as lideranças quilombolas sustentam que viabilizar às comunidades a implementação destes direitos vai, ao mesmo tempo, auxiliar na geração de renda e na conservação ambiental.

“A roça perene também se complementa dentro dos processos do nosso sistema agrícola. Todas as comunidades do Vale do Ribeira sempre produziram algo a mais para poder manter o processo econômico do seu núcleo familiar, da sua comunidade. A grande questão está em como se vê isso”, ressaltou Rodrigo Marinho, do Quilombo Ivaporunduva, articulador da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone).

Pode parecer uma questão de simples resolução. No entanto, as negativas se dão exatamente em torno da interpretação da legislação. Ao se depararem com uma área de roça perene, os órgãos fiscalizadores se valem da Resolução 005/2021, da então Secretaria de Estado de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo, para a aplicação de multa sob o argumento de destruição da floresta sem autorização ou licença.

O que ocorre, entretanto, é que as comunidades têm a obtenção das licenças dificultada pelos órgãos ambientais que se apegam à exigência de compensação ambiental “na forma da destinação de área equivalente à extensão da área desmatada, com as mesmas características ecológicas, na mesma bacia hidrográfica, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica”, conforme previsão da Lei 11.428/2006, a Lei da Mata Atlântica. Assim, para cada hectare licenciado para roças de banana e pupunha o Estado exige a criação de mais 1,25 hectare de área de reserva legal no Quilombo.

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No entanto, o que as lideranças quilombolas e seus representantes legais fazem questão de enfatizar é que a mesma Lei da Mata Atlântica dispõe, direta e claramente, em seu Artigo 23, que a compensação ambiental não se aplica “ao pequeno produtor rural e populações tradicionais para o exercício de atividades ou usos agrícolas, pecuários ou silviculturais imprescindíveis à sua subsistência e de sua família”.

E que, além disso, seu Artigo 13 prevê que os órgãos competentes do Poder Executivo adotem normas e mecanismos especiais para assegurar “procedimentos gratuitos, céleres e simplificados, compatíveis com o seu nível de instrução” e “análise e julgamento prioritários dos pedidos”, o que não ocorre na prática, pois não existem procedimentos simplificados de licenciamento ambiental para quilombolas.

Dessa forma, na avaliação de Prioste, o racismo ambiental se manifesta pela negativa de efetivação de direitos expressamente previsto na legislação a quilombolas, ao mesmo tempo em que submete as práticas tradicional à criminalização por meio da fiscalização ambiental.

Liderança do Quilombo São Pedro, Aurico Dias diz não conseguir compreender a razão pela qual sua comunidade e as comunidades vizinhas são abordadas com tanta violência em razão da roça que praticam há séculos. “O Governo [do Estado de São Paulo] proíbe nossas roças porque precisamos de licenças, da ordem deles para produzir. E por isso recebo pessoas armadas na minha porta me acuando a explicar que roça é essa que nós temos. Todos nossos antepassados respeitaram as nascentes, as cabeceiras de rios, e nós seguimos fazendo assim. Isso não tem razão para acontecer”, desabafou.

A roça que Aurico e seus vizinhos abrem em suas terras, e que depois se tornam razão de multas na casa das dezenas de milhares de reais, é uma pequena parcela de cultivo de banana ou de palmito pupunha que eles comercializam junto à Cooperquivale, a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira, e que auxiliam na complementação de renda de suas famílias. É daí que vem o dinheiro para comprar roupas, calçados, fazer uma reforma em casa, adquirir um meio de transporte e equipamentos para comunicação.

Assessora técnica do ISA, Raquel Pasinato recordou que a Lei da Mata Atlântica condiciona a inexigência de compensação ambiental por retirada de vegetação à verificação de que os cultivos que se farão são necessários à subsistência das famílias quilombolas. “Assim, será preciso debater o que é subsistência, superando eventuais visões racistas a respeito da subsistência e da dignidade de quilombolas. Subsistência não pode ser vista como uma situação de miséria e ausência de renda financeira. Subsistência é viver com plenitude e dignidade.”

“A questão da subsistência vai além de só plantar para alimentar, mas também para poder se manter e ter uma vida digna. Porque todo mundo precisa comer, precisa se vestir, precisa estar bem, precisa sair, precisa fazer todo o processo de cotidiano normal que passa por uma atividade que lhe permita uma renda”, reforçou Rodrigo Marinho.

“São mais de 400 anos de resistência. Demoramos mais de 100 anos para sermos vistos, o que só aconteceu com a Constituição Federal. A gente já lutou e luta pela conquista do território. Mas do que nós vamos sobreviver? Essa é uma luta pela vida”, complementou Laudessandro da Silva.

Adair Soares da Mota, liderança do Quilombo Nhunguara, alertou para o esvaziamento dos territórios – causado pela criminalização da roça perene. “Muitos dos nossos jovens estão indo para as roças grandes para trabalhar pro grande produtor, e assim eles saem das nossas terras. Aqui eles poderiam estar produzindo alimentos orgânicos e fortalecendo nossa permanência nos quilombos. Eu já passei muita fome, e hoje vejo a fome das nossas comunidades esbarrar nas decisões do Governo.”

Presente no Seminário representando a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), Luiz Henrique Tibúrcio reconheceu a preservação histórica promovida pelos quilombolas na região: “isso não é só coincidência”. E também defendeu que o processo de licenciamento acompanhe as realidades e vivências dos povos tradicionais do Vale do Ribeira. “Precisamos ser mais um personagem na construção deste diálogo. Agora, cabe à Cetesb ampliar esta discussão na casa e também dentro da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado”, afirmou.

Coordenador do Programa Vale do Ribeira do ISA, Frederico Viegas foi taxativo ao defender que “precisamos superar esta questão da subsistência e avançar nesta leitura”. Na visão do coordenador, “esta não é uma questão de boa vontade, é uma questão de direitos. Essas comunidades precisam poder produzir comida”.

Viegas ressaltou que todas as falas de lideranças quilombolas durante o debate demonstraram uma comunidade de cultura dinâmica e reforçou como os números apresentados pelas pesquisas acadêmicas que monitoram a região desde as últimas décadas comprovam sua atuação pela permanência da floresta em pé.

Representante do Governo Federal no Seminário, o diretor de Reconhecimento, Proteção de Territórios Tradicionais e Etnodesenvolvimento do Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Antônio João Mendes, o Antônio Crioulo, enfatizou que os quilombolas não são o problema, mas sim uma solução para a sociobiodiversidade brasileira.

“No MDA compreendemos que os quilombolas são os guardiões da floresta. Os territórios preservados deste país estão sob o domínio dos quilombolas, dos indígenas e das comunidades tradicionais.” E encerrou o evento com um recado para aqueles que cerceiam os direitos das comunidades tradicionais do País: “se querem preservar, não venham ensinar não, venham até aqui para aprender como se faz”.

João Santos Rosa, dança enquanto a Dona Elvira Morato, do Quilombo São Pedro, canta a música Tá na Hora da Roça, acompanhada do Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim

Depois da retomada pós-pandemia que ocorreu em 2022, neste ano a Feira de Troca de Sementes e Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira apresentou mais uma edição forte, demonstrando sua consolidação não somente por parte de seus anfitriões, mas também pela diversidade do público presente que movimentou a Praça Nossa Senhora da Guia, na cidade de Eldorado.

Representantes de comunidades Caiçaras e do povo Guarani Mbya também se somaram aos quilombolas na exposição e venda de seus produtos tradicionais e nas apresentações culturais. No palco, montado pela Prefeitura da cidade, o público acompanhou violeiros, danças regionais, recital de poesias, roda de capoeira e até mesmo um coro infantil de crianças quilombolas que cantaram composições da anciã Dona Elvira Morato, do Quilombo São Pedro, emocionando a todos pela força de uma cultura que resiste com delicadeza e beleza.

Maria Izaldite Dias, quilombola da Barra do Turvo, voltou a participar da feira presencialmente desde 2020, quando as edições foram suspensas em razão da pandemia da Covid-19, representando a Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras (Rama) comercializando tinturas, xaropes e pomadas. “Ano passado não pude vir e fiquei muito sentida. Agora estou muito feliz em estar aqui. Na Feira é onde a gente se encontra e confraterniza. Eu fico feliz também porque meus produtos ajudam as pessoas. É bom saber que elas estão se tratando com produtos naturais.”

Ambientalista, hoje deputado federal, Nilto Tatto participou ativamente da criação da Feira no ano de 2008 e esteve presente para prestigiar o evento e as comunidades. “Acho fundamental que esta Feira venha crescendo cada vez mais, porque é importante a gente mostrar o que está sendo feito nos quilombos, tanto na questão da manutenção da agrobiodiversidade, quanto do modo como se faz a roça”, disse.

“Além disso, é um reconhecimento público dos quilombolas enquanto parceiros da agrobiodiversidade e do enfrentamento da crise climática. E ainda temos a riqueza da diversidade cultural. Este é um momento de expressão para a região, porque são manifestações muito reconhecidas fora daqui e regionalmente não têm o reconhecimento que deveriam. É um enfrentamento a partir do belo.”

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