No dia 20 de abril de 1779, os vereadores de Iguape oficiavam ao ouvidor geral Antônio Barbosa de Mattos sobre a utilidade de se abrir um canal que comunicasse o rio Ribeira com o Mar Pequeno, eliminando-se, assim, o inconveniente de se transportar em carroças o arroz desde o Porto do Ribeira até o Porto Grande, numa distância de, aproximadamente, três quilômetros.
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Valo Grande em 1906. Foto da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo |
De acordo com a Câmara, todo o povo iguapense se dispunha a trabalhar de mão comum para a “manobra do Vallo”, uma vez que essa obra era considerada “redonda de utilidade”.
Até 1805, nada mais se falou a respeito desse canal. Então, em sessão de 1º de junho desse ano, a Câmara decidiu oficiar ao senhor general da Capitania de São Paulo a respeito “do furado que se tem concordado fazer pello mesmo antigo Vallo do Rocio [...], a fim de contaminar as aguas do Rio da Ribeira ás do mar.”
Por mais de quinze anos o projeto ficou esquecido. Até que, em 1820, a Câmara voltou ao assunto, porém sem maiores resoluções. Em 1824, a Câmara sugeriu ao presidente da Província que, entre os melhoramentos necessários a Iguape, fosse aberto o canal.
Em 12 de fevereiro de 1825, os vereadores José Inocêncio Alves Alvim e José Antônio dos Anjos apresentaram à Câmara “um requerimento e a ele anexas as condições com respeito à abertura de um valo do Porto da Ribeira para o Mar Pequeno desta villa.” O requerimento foi aprovado e todos os vereadores concordaram quanto à abertura de uma vala “da Ribeira ao porto de Iguape”.
Porém, as sessões subsequentes da Câmara foram tumultuadas. Formaram-se dois “partidos”: um opinando que a vala fosse aberta ao sul da vila (onde foi construído o canal), por ser de menor longitude; outro, para que se fizesse pela fralda do morro existente ao norte da vila (Morro da Espia), em razão de ser o terreno mais sólido, embora um pouco mais distante.
O governo da Província enviou a Iguape o engenheiro tenente-coronel Eusébio Gomes Barreiros, para estudar o problema e dar seu parecer. Naturalmente, o engenheiro opinou que o valo fosse aberto do lado norte, o que desgostou a população da vila. A maioria queria que o canal fosse construído do lado sul.
Em 1826, estando em Iguape o engenheiro Paulo Freire de Andrade, que chefiava uma comissão referente às sesmarias e terrenos da Marinha, a Câmara local pediu a sua opinião com respeito ao valo.
Freire assim se expressou: “Se o terreno desde o rio Ribeira até ao Icapara resistisse à impetuosidade da corrente, eu diria que o canal deveria passar pelo meio da vila, mas não resiste, nem pode resistir; logo deve passar ao norte ou ao sul dela.”
O INÍCIO DO CANAL
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Valo Grande em 1906, recorte. |
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Os trabalhos para a abertura do canal foram iniciados uma semana antes de 27 de agosto de 1827, dia em que foi paga a primeira turma de trabalhadores empregados nessa obra. Os salários pagos eram de 180 a 240 réis diários. Porém, os trabalhos logo foram paralisados, por motivos os mais diversos.
Em 7 de agosto de 1829, por ordem do governador da Província, a Câmara de Iguape reuniu-se em sessão extraordinária para tratar do prosseguimento da obra. Os recursos empregados na abertura do canal eram fornecidos exclusivamente pela população.
O governo, posterior a 1829, mandou continuar a obra, remetendo a importância de um conto de réis, que figurou como empréstimo da Fazenda Nacional.
Nessa ocasião, os engenheiros brigadeiro João da Costa Ferreira e tenente-coronel Eusébio Gomes Barreiros nivelaram o terreno e calcularam que as águas do rio Ribeira, na embocadura do canal, ficavam seis metros acima do nível do Mar Pequeno.
De 27 de agosto de 1827 até 5 de janeiro de 1833, foi despendida na obra a quantia de 5:284$300 réis. Para cobrir essa despesa, foram feitas subscrições que importaram em 2:097$120 réis, além de 400$000 réis fornecidos pela Câmara Municipal e mais 1:300$000 réis emprestados pela Real Fazenda aos empregados da fatura dessa obra, apresentando um déficit de 1:487$180 réis.
Pouco consta em relação as obras no período de 1834 a 1837. Com a falta de dinheiro, travou-se uma verdadeira luta no sentido de se arrecadar fundos para a execução dos trabalhos.
Foi quando o Governo decretou a Resolução n° 19, de 14 de março de 1837, estabelecendo imposto de 20 réis por alqueire de arroz pilado que fosse exportado para fora do município, cuja renda deveria ser destinada às obras do canal.
Como seria natural, houve forte protesto por parte dos negociantes. Mesmo assim, a taxa continuou a ser cobrada.
Em 1840, a Câmara de Iguape admitia que o canal poderia desbarrancar por ocasião das enchentes. Em fevereiro de 1841, quatorze anos após o início dos trabalhos, um relatório técnico indicava que das 1.320 braças previstas já haviam sido abertas, até essa data, 525 braças, sendo ainda necessário rebaixar 5 palmos o fundo do canal em toda a sua extensão.
Por volta de 1848, o canal já havia sido aberto totalmente, desde o Porto Velho da Ribeira até o Mar Pequeno, apesar de ainda não apresentar condições de dar franca passagem às canoas. Em 1851, reza um documento, o canal “dava um trânsito quasi constante.”
A Lei n° 13, de 17 de julho de 1852, determinou que a renda do imposto criado em 1837 para as obras do Valo Grande, fosse a outra metade destinada às obras da Igreja do Bom Jesus (atual Basílica), então em construção.
Em 1860, respondendo ao Governo da Província, a Câmara de Iguape informava que “as obras do Canal que communica a Ribeira com o Mar-pequeno [...] se achão concluidas dando o dito Canal transito livre as canoas.”
Alguns historiadores acreditam que essa tenha sido a primeira grande obra hidráulica executada no Brasil.
A AMEAÇA DO VALO
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Mapa da região de Iguape, com destaque para o Valo Grande. |
Pouco mais de uma década após começar a dar passagens às embarcações, o pequeno valo, que podia ser “pulado” por uma pessoa adulta, virou motivo de inquietação.
As águas do Ribeira, tendo um novo escoadouro, passaram a desaguar nesse canal; suas margens, arenosas, não suportando a força das águas, começaram a desbarrancar e a engolir as construções existentes nas imediações.
A cidade vivia apavorada. Diziam que, de uma hora para outra, Iguape iria acabar no fundo do Valo Grande.
A imprensa da época registra bem essa preocupação do povo com relação ao perigo do canal. E, através da leitura dos jornais, podemos compreender o estado de espírito do iguapense naquele tempo.
Até mesmo na Alemanha a questão do Valo Grande foi comentada. O jornal Oligemeine Dentsche Beitung, em seu n° 40 (não há referência à data), publicou a seguinte matéria, transcrita pelo Commercio de Iguape, n° 191, de 19/10/1879, devidamente traduzido:
“Iguape está em perigo pelas aguas de um canal distanciado 80 metros da cidade, o qual se tinha feito para ligar as aguas do mar, e que com o tempo tem sido tão minado, que o mesmo canal já tem a largura de cento e vinte metros.
A LUTA PELO FECHAMENTO
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Vista aérea de Iguape, década de 1930. Instituto Histórico e Cartográfico. |
À medida em que aumentava o volume d'água do Ribeira escoado no Valo Grande, o canal tinha as suas margens desbarrancadas pela impetuosidade das águas, o que resultou no “engolimento” de diversas casas construídas nas proximidades do canal.
Em 1868, o engenheiro Silva Coutinho, comissionado pelo governo, verificou a largura de 26,40 metros. Posteriormente, em 1871, esse mesmo engenheiro mediu a largura de 36 metros, o que equivalia a um aumento anual de 3,30 metros.
Em 1878, de acordo com as plantas elaboradas pelo engenheiro Weiss, a largura média, acima da embocadura, acusava um alargamento de 45 metros.
Nesse mesmo ano, a 23 de novembro, Júlio Groth apresentou à Câmara de Iguape proposta “para revestir com fachinas, por 25 contos de réis, a margem esquerda do Valo Grande.”
Seriam 10.000 metros cúbicos de faxinas, sendo que na boca superior o canal seria revestido de pedras. Essa foi a primeira iniciativa de se fechar o Valo Grande, que não vingou.
Em 12 de março de 1879, uma representação do povo iguapense enviou longa carta ao imperador Dom Pedro II, onde denunciava “o visível e ameaçador perigo que vai desenvolvendo para a localidade o canal existente entre a Ribeira e o Mar Pequeno.”
Essa representação parece que conseguiu sensibilizar o imperador, que ordenou providências ao Governo de São Paulo.
Em 1888, o engenheiro Domingos Sérgio Saboya e Silva efetuou medições no canal, encontrando uma largura média de 100 metros, variando a profundidade de 7,40 a 16,30 metros.
Em 1889, deu-se o primeiro passo efetivo para o fechamento do Valo Grande. Nessa ocasião, a Diretoria do 5° Distrito Marítimo recebeu ordens expressas para dar início imediato aos trabalhos, construindo um revestimento de pedras para corrigir a margem esquerda e cujo comprimento estendia-se desde o Porto Velho da Ribeira até o local em que sua largura era de apenas 110 metros. Nesse local foi iniciada a construção de uma barragem.
Porém, os trabalhos foram paralisados. Não demorou muito e as águas vieram com maior força ocupar o seu antigo leito e derrubaram a barragem.
Em janeiro de 1890, foi criada a Comissão das Obras do Canal de Iguape, sendo nomeado chefe da comissão o engenheiro João Carlos Greenhalgh que, tendo de informar acerca de representação da Câmara de Iguape, opinou pelo fechamento do canal como uma necessidade.
Em 1893, o canal acusava uma profundidade de 8 a 19 metros, e largura média de 120 metros, correspondendo a um acréscimo anual de 4 metros, em comparação com as observações do engenheiro Saboya.
Em 30 de julho de 1896, o jornal O Estado de S. Paulo publicava extensa matéria sobre o problema, na qual, além de um histórico, apresentou vários pareceres de técnicos da época.
Estava, assim, iniciada uma luta ecológica que viria a perdurar por quase um século. Nesse ano, o Valo Grande media 260 metros de largura e 18 metros de profundidade.
Em 1902, em visita a Iguape, o médico Adolpho Lindenberg (1872-1944) apresentou relatório onde afirmava que o fechamento do Valo Grande poria fim à insalubridade do terreno e, dessa maneira, evitaria doenças que existiam em consequência desse estado insalubre das proximidades do canal.
Em 1912, o engenheiro Greenhalgh cubou os sedimentos de areia em nada menos do que 6 milhões de metros cúbicos.
Em datas posteriores, esse volume de areia depositado no Mar de Dentro, nas imediações do Porto de Iguape, aumentaram consideravelmente, impedindo a entrada de embarcações de maiores calados.
Até as últimas duas décadas do século XIX, o Porto de Iguape ainda oferecia um franco ancoradouro às embarcações de pequeno calado.
Com o entulhamento progressivo desse porto, ocasionado pelo alargamento do Valo Grande, a área do porto, em 1892, já se encontrava bastante prejudicada.
Prosseguindo o processo de entulhamento do porto, em 1896, as embarcações eram obrigadas a fundear e descarregar a uma distância de 600 metros do cais. Muitos bancos de areia formaram-se em frente ao porto, entre os quais o mais conhecido era o chamado Caranguejo.
Em 1914, quando foram concluídos os trabalhos da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo, dirigida pelo Dr. José Cardoso de Almeida, verificou-se no Valo profundidade até 20 metros e largura média de 160 metros.
O FECHAMENTO
Em 1965, o DAEE – Departamento de Águas e Energia Elétrica, através da firma Geobrás, reexaminou o problema do complexo lagunar do Mar Pequeno e Valo Grande, decidindo-se, finalmente, pela construção de uma barragem.
Assim, em dezembro de 1975, o DAEE apresentava o Projeto Básico de Fechamento do Valo Grande, encarregando para a elaboração definitiva do projeto a firma Engevix.
Este projeto foi colocado em execução em 1978 e, neste mesmo ano, no dia 6 de agosto, a barragem do Valo Grande estava terminada.
Em 3 de dezembro, no aniversário da cidade, com a presença do governador Paulo Egydio Martins, foi aberta ao tráfego e inaugurada oficialmente a pista já asfaltada da barragem.
Posteriormente, vários governos estaduais prometeram o fechamento do Valo Grande pelo sistema de eclusas. Mas essa é uma história que exigiria várias edições de nossa folha.
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Valo Grande, vista geral. |
REFERÊNCIAS
YOUNG, Ernesto Guilherme. História de Iguape. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, págs. 195-266).
Por Roberto Fortes
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